24 de fevereiro de 2010

Sou um evadido


Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.

Fernando Pessoa

Poema do inverno e da esperança

22 de fevereiro de 2010

Amélia dos Olhos Doces


Amélia dos Olhos Doces
quem é que te trouxe
grávida de esperança?
Um gosto de flor na boca.
Na pele e na roupa
perfumes de França.

Cabelos cor de viúva.
Cabelos de chuva.
Sapatos de tiras
e pões, quantas vezes
não queres e não amas
os homens que dormem
contigo na cama.

Amélia dos Olhos Doces
quem dera que fosses
apenas mulher.
Amélia dos Olhos Doces
se ao menos tivesses
direito a viver!

Amélia gaivota
amante ou poeta.
Rosa de café.
Amélia gaiata
do Bairro da Lata.
Do Cais do Sodré.

Tens um nome de navio.
Teu corpo é um rio
onde a sede corre.
Olhos Doces. Quem diria
que o amor nascia
onde Amélia morre?

Cabelos cor de viúva.
Cabelos de chuva.
Sapatos de tiras
e pões, quantas vezes
não queres e não amas
os homens que dormem
contigo na cama.

Joaquim Pessoa

Soneto


Eu que faço? Que sei? Que vou buscando?
Conto, lugar, ou tempo, a esta fraqueza?
Tenho eu mais que acusar, por mais firmeza,
Toda a vida, sem mais como, nem quando.

Se cuidando, Senhor, falando, obrando
Te ofenda minha ingrata natureza,
Nascer, viver, morrer, tudo é torpeza
Donde vou, donde venho, donde ando?

Tudo é culpa, ó bom Deus, não uma e uma
Descubro ante os teus olhos. Toda a vida
Se conte por delito, e por ofensa.

Mas que fora de nós, se esta, se alguma
Fora mais que uma gota a ser medida
Co largo mar de tua Graça imensa?

D. Francisco Manoel de Melo
(Portugal 1608 – 1667)

Tantas flores

21 de fevereiro de 2010

No meio do mundo


Com medo de o perder nomeio o mundo
Seus quantos e qualidades, seus objectos
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos


Nomeei as coisas e fiquei contente
Prendi a frase ao texto do universo
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente
Em cada pausa e pulsação, um verso.

Vitorino Nemésio

Música

Prelúdio


Levanta-se da rocha a flor esmagada
Mais dura do que a rocha e cristalina.
Raízes, caule, pétalas, angústia.

Raízes para sempre ali cravadas,
Caule verticalmente inexorável,
Pétalas miraculosas: pura água.

Minhas mãos são chagas
Para te colher...
Minhas mãos são chamas,
pedaços de gelo...

Levanta-se da rocha a flor esmagada.


Cristovam Pavia

Canção Verde

Poesia

19 de fevereiro de 2010

Abdicação



A Magdalena

De Noucte a Magdalena vai segura,
Passa per homens d’armas sem temor,
Tam enlevada vai no seu amor,
Que lhe não lembra a quãto s’aventura.

Indo buscar a vida á sepultura
Quando não achou nella o Redentor,
Com suspiros, com lagrimas, com dor
Movia a piedade a pedra dura.

Suave Esposo meu, ah meu só bem
(Co’s olhos no sepulchro começou)
Levarão-vos daqui? aqui vos tinha?

Quem vos levou Senhor, onde vos tem?
Torne-me, meu Senhor, quë mo levou,
Ou leve com seu corpo est’alma minha.


Diogo Bernardes
(1520 - 1605)


Estamos vivendo na aba do mar

18 de fevereiro de 2010

Respiro o teu corpo


Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

Nos olhos de Isa


Nos olhos de Isa a chuva grita e a noite
Acende fogueiras.

Os meus olhos param. Nos olhos de Isa.

Oh, nos olhos de Isa espreguiça-se a madrugada
E o vento acorda para ajudar os pássaros a voar
E as árvores a acenar-lhes uma bandeira de folhas, uma tristeza verde.
Nos olhos de Isa.

Nos olhos de Isa a manhã explode num inferno de estrelas,
Num clarão de silêncio, em estilhaços de rosas, pétalas de sombra.
Nos olhos de Isa os poetas vagueiam num bosque de mel
Onde as abelhas constroem a tarde
Desesperadamente.
Nos olhos de Isa ninguém repara na minha solidão.

Joaquim Pessoa

Elegia do ciúme

Trovas a este vilancete


Abaix´esta serra
verei minha terra

Ó montes erguidos
deixai-vos cair,
deixai-vos sumir
e ser destruídos,
pois males sentidos
me dam tanta guerra
por ver minha terra.

Ribeiras do mar,
que tendes mudanças,
as minhas lembranças
deixai-as passar.
Deixai-mas tornar
dar novas da terra
que dá tanta guerra.

Francisco de Sousa (séc. XV)

Auto-retrato

Regresso

17 de fevereiro de 2010

Personagem

A saudade na mulher


A saudade na mulher
mata o coração e a alma,
porque momento não acalma
a tormenta que tiver.
Que tu, se te vais de mi,
verás outras formosuras,
falas e ouves doçuras;
mas eu não vejo sem ti
senão coisas muito escuras.

Gil Vicente (1465-1539)


Alheamento

Pretexto

Ai Deus, e u é?


Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
Ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
- aquel que mentiu do que pôs comigo?
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquele que mentiu do que m´há jurado,
Ai Deus, e u é?

Vós me perguntades polo voss´amigo?
E eu bem vos digo que é san´e vivo.
Ai Deus, e u é?

Vós me perguntades polo voss´amado?
- E eu bem vos digo que é viv´e sano.
Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é san´e vivo,
e será vosc´ant´o prazo saído.
Ai Deus, e u é?6

E eu bem vos digo que é viv´e sano,
e será vosc´ant´o prazo passado.
Ai Deus, e u é?

Dom Dinis (1261-1325)


16 de fevereiro de 2010

A rã



Um Carnaval

Soneto martelado


A tarde, e por de mais calma,
Afogou-me o que ficara da partida
Tudo que inventara, essa mentira querida
Que ficara fazendo as vezes da alma.
Passa e segue a triste gente calada
E o correio e a luz quebrada no muro
Trazem a tarde, recortando duro
O perfil triste e morno desta minha estrada.
E choca e vem de mim até ao céu polido
Liso e puro e sempre igual estendido
Sobre mim e a rua desolada,
Uma ilusão que nada tem de alada
E é feita de aço puro e diamantes:
Não querer tornar-me no que era dantes.

José Blanc de Portugal

Libertação

Posição

Fuga

15 de fevereiro de 2010

Poderia ter escrito a tremer


Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio de ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti.

Daniel Faria

O rei e o sapateiro


Bulhão Pato


Primeiro poema do quarto assombrado

Calma